imperfeito

quarta-feira, janeiro 24, 2007

Piratininga: 1532 - 1560*



SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA



ROMA, janeiro (Via Panair do Brasil) -- A fundação, há quatrocentos
anos, de um povoado de portugueses apartado doze leguas do litoral
atlantico, em sertão quase invio --só acessivel através de asperas
veredas, que até ao seculo passado seriam o tormento ou o espantalho
dos viajantes-- sugere problemas que transcendem o alcance de uma
simples historia regional. Em parte alguma das suas conquistas,
certamente em lugar algum do Brasil, tinham os lusitanos formado um
assento urbano tão longe da costa maritima ou dos rios navegaveis. O
principio que, expresso ou não, governa por essa epoca toda a sua
expansão ultramarina, manda que as regiões de terra a dentro não se
povoem antes de assegurado o povoamento, a defesa e a posse da marinha.
O contrario seria desampararem-se, com funesto efeito, as mesmas
conquistas, sobretudo se em sitios infestados de inimigos e corsarios.


Precisamente no Brasil, aquele principio, ditado pelas condições
especiais de sua metropole européia, que não dispunha de gente numerosa
e nem, por isso mesmo, de poderosa milicia, para ensaiar em seu longo
imperio uma empresa de molde aparatoso, comparavel à que se vinha
realizando nas Indias de Castela, é manifesto já nas cartas de doação
das capitanias, onde se estipula que aos donatarios será licito
erigirem tantas vilas quantas queiram junto ao mar ou aos rios
navegaveis, porem que pela terra a dentro as não poderão fazer, salvo
se entre uma e outra corra espaço minimo de seis leguas. A idéia era,
claramente, conterem-se os povoadores nas imediações dos portos de
embarque e pontos vulneraveis da costa, pois não seriam os colonos em
tamanho numero que pudessem ser encaminhados ao sertão sem se
despovoarem aqueles sitios. Em resultado de uma tal providencia, o
Brasil quinhentista não abriria exceção à regra então dominante no
mundo português, que um historiador dos nossos dias definiu
sugestivamente dizendo que constava de "uma linha de fortalezas e
feitorias de dez mil milhas de comprido" (1)
Mas a exceção existe. Existe, paradoxalmente, no ponto exato onde a
barreira das montanhas, que no Brasil acompanham a orla costeira,
parece oferecer maior estorvo ao acesso e penetração do territorio.
Ainda mais: "O empenho de triunfar sobre esse natural obstaculo e de se
instalar serra acima parece perseguir os colonizadores logo depois de
familiarizados com o litoral vicentino".


Nada, ou quase nada, sabemos das entradas daqueles portugueses
--reinóis ou mazombos, brancos e mestiços da terra-- que, antes de
chegar a armada de Martim Afonso de Sousa, tinham na ilha de São
Vicente um povoado estavel, onde se dedicavam ao trafico de escravos
indigenas. Mas não foi certamente por acaso que o capitão português,
tendo corrido toda a costa conhecida dos demonios portugueses na
America, elegeu aquele ponto para penetrar o sertão e ali levantar
pelourinho nos campos de Piratininga. Como, por falta de comodidade,
logo se dispersasse essa primeira vila, nem assim esmorece o empenho de
povoar o planalto. Passados quase vinte anos, em 1550, o padre jesuita
Leonardo Nunes escala, por sua vez, a serra fragosa, encontra ali
derramados os cristãos pertencentes ao nucleo disperso, que não tinham
tornado ao litoral, e trata de juntá-los novamente. Como não pudessem
ter vida civil ou religiosa, por falta de quem curasse disso, fez com
que se reunissem todos, desta vez à borda do campo, em torno da pequena
igreja que fizera construir. Com razões provaveis supõe Serafim Leite
que se tratasse da ermida e povoação, mais tarde vila, de Santo André,
o celebre reduto de João Ramalho e de seus filhos mamelucos (2).


O nucleo originario da atual São Paulo é notorio que não foi ali, mas
em lugar distante duas leguas para o sertão, à margem do rio que então
se chamava Piratininga e, de fato, "onde Martim Afonso de Sousa
primeiro povoou" (3). Sabe-se hoje que a fundação dessa nova aldeia,
por iniciativa e esforço de Nobrega, ocorreu no dia 29 de agosto de
1553. Quando, a 25 de janeiro do ano seguinte, se inaugurou a casa
nova, de taipa, destinada aos irmãos, ainda se conservava no local a
velha cabana em que ficara situada a "escola de meninos" do irmão
Afonso Rodrigues, diferente da "escola de gramatica", ou de latim, do
irmão José de Anchieta. O adjetivo "velhissimo", expressamente aplicado
ao edifício ("pauperrimo et vetustissimo... tuguriolum") no texto
jesuitico onde vêm consignados estes fatos, não combina facilmente com
a suspeita de que datasse apenas do estabelecimento preliminar dos
inacianos anterior de cinco meses à fundação oficial e ao batismo do
povoado. É perfeitamente natural, por outro lado, a suposição de que
subsistisse ainda em 1554, no local, alguma das taperas da vila de
Martim Afonso de Sousa. Nesse caso não é audacioso dizer que o povoado
de Nobrega se enlaça perfeitamente ao de Martim Afonso e, assim, que as
comemorações atuais se hão de referir, não tanto à fundação inicial,
como a uma segunda e definitiva fundação. A primeira dataria, em
realidade, de 1532.


Nada disso diminui o papel que coube ao Provincial dos jesuitas nas
origens da atual São Paulo. Melhor do que outros, melhor do que o
primeiro Governador-Geral, soubera ele ver as vantagens, ao menos para
o mister da catequese, de uma entrada e fixação nas areas de
serra-acima. E ainda que essas vantagens parecessem resumir-se, de
inicio, no seu desejo de conservar o gentio da terra livre de contacto
assiduo com os colonos, o interesse que depois mostrou na mudança para
o novo local dos moradores de Santo André da Borda do Campo --mudança
que se fará em 1560 por determinação de Mem de Sá-- indica que tal
razão não seria preponderante em seu pensamento. E em carta de março de
53, escrita a seu mandado e só agora divulgada por Serafim Leite,
diz-se que já era intenção do Provincial ir pela terra dentro e fazer
entre os gentios "uma cidade" (4).


Contra esse pensamento, as razões opostas por Tomé de Sóusa, que tratou
obstinadamente de embargar o plano de um novo estabelecimento na boca
do sertão, obedecem ainda à concepção portuguesa tradicional, que só
via em uma tal iniciativa o risco de ficar inteiramente desamparado o
litoral maritimo. Esse risco era particularmente sensível no momento em
que surgia noticia ou esperança de haver ouro e prata por aquele
sertão. À mesma razão alude Nobrega quando tenta discriminar as causas
da resistencia do governador. "Porque", observa em carta daquele ano de
53, "fôra abrir as portas a grandes males e a se despovoar esta
capitania". Adiante, na mesma carta, justifica-se mais
pormenorizadamente aquela noticia, ou esperança, com a alegação de se
terem encontrado minas de prata, embora, por falta de quem as fundisse,
não se soubesse ao certo o que fosse, "as quais minas", diz-se
textualmente, "acharam e descobriram os castelhanos do Paraguai, que
estarão daqui desta Capitania (de São Vicente) 100 leguas e está
averiguado estarem na Conquista de El Rei de Portugal".


É de todo interesse aproximar-se a essa informação o constante de um
documento aparentemente ainda inedito existente no "Archivo General de
Indias de Sevilha", onde o espião castelhano Martin de Orue relata os
resultados da missão secreta que lhe fora confiada em cedula de sua
majestade Catolica, de obter pessoalmente, com a melhor diligencia, em
Lisboa, varias informações relativas à expedição de Luís de Melo. Nesse
papel, a que tive oportunidade de aludir em outra ocasião (5), declara
Orue que, no mês de setembro de 1553, "veio um homem da mesma capitania
de São Vicente e vizinho dela, chamado Adão Gonçalves, por parte do
capitão daquela terra, o qual trouxe certos metais que houvera da gente
do Rio (da Prata), que lhe haviam dado os espanhóis que tinham pousado
em sua casa e o que lhes tomou o capitão da terra e parte desses metais
diz que eram da Assunção e parte do Piquiri". Acrescenta que, chegando
a Lisboa, Gonçalves dera parte do caso a Martins Afonso de Sousa e,
feitos dos metais certos ensaios, acharam que era prata e de boa
qualidade (6).


A noticia logo se divulgaria em Lisboa e os mesmos Martim Afonso e Adão
Gonçalves, juntamente com dois mercadores que tinham seus negocios de
açucar em São Vicente, a saber o flamengo João Benyste (isto é Jan Van
Hielst, agente dos Schetz de Antuerpia) e o genovês Felipe de Adorno,
pleitearam de sua alteza que por nenhum modo permitisse passagem pelo
caminho entre São Vicente e Assunção, caminho este que Tomé de Sousa
mandaria cegar, por assim convir melhor à real fazenda. Ao mesmo tempo
solicitavam lhes fosse autorizado entrar pela terra a dentro em busca
de minas e metais, e que onde os achassem e povoassem, pagariam os
quintos e direitos pertencentes à Coroa. Outrossim, onde quer que
encontrassem os ditos metais, e por espaço de vinte leguas em torno,
nenhuma outra pessoa poderia entrar a buscá-los ou descobrí-los.


Segundo o mesmo documento, deferiu El Rei ao pedido, dando aos
requerentes o alvará necessario. E seu fim --comenta Martin de Orue--
"era ir às minas do Piquiri, porque dizem que aquela terra e ainda a
Assunção entram na demarcação do rei de Portugal". Com esse despacho,
já em março do ano seguinte saiam de Lisboa, com destino a São Vicente,
os ditos Gonçalves e Adorno, decididos a pôr o plano em execução.


Seja qual for a parte de fantasia que possa entrar na relação de Ourue,
entregue ao "Conselho de Sua Majestade o Imperador em Valadolid" a 5 de
setembro de 1554, suas informações completam e ampliam em partes o que
sabemos através das palavras de Nobrega e de Tomé de Sousa. A noticia
da existencia de prata no Piquiri resultaria sem fundamento após exames
mais acurados do que os que se teriam ensaiado em 1553 no metal ali
encontrado. E quando Felipe de Adorno e Adão Gonçalves partiram de
Lisboa, em março de 1554 já estava fundada, e com seu nome definitivo,
a povoação nova do campo de Piratininga.


Os pretensos achados de minas só indiretamente poderiam ter influido no
bom exito do estabelecimento. E no entanto é de todo provavel que de
algum modo estimulassem a penetração do territorio. É de crer que a
mesma causa tivesse agido vinte e dois anos antes sobre o animo de
Martim Afonso quando decidira criar um vila no planalto: por isso ficou
dito acima que não seria casual sua decisão de escolher este e não
outro ponto dos dominios portugueses para fundar um primeiro nucleo
fixo de moradores fora da orla maritima. E tambem não terá sido por
acaso --acrescente-se-- que, tendo percorrido toda a costa brasileira,
foi em São Vicente que obteve seu quinhão ao instituir-se o regime das
capitanias.


Em realidade, das terras que quase certamente cabiam na demarcação
lusitana da America, era esta, geograficamente, a mais chegada às
regiões platinas, já celebres pelas riquezas fantasticas que lhe
atribuiam os primeiros navegantes. Já ao sul de Cananéia principiava a
area que esses marujos tinham batizado com o nome de "costa do ouro e
da prata". Dali os homens da armada de d. Nuno Manuel tinham levado, a
partir de 1514, noticias da existencia de um misterioso povo serrano
que trazia "ouro batido à maneira de arnez do peito". Ali, segundo se
dizia, fora colhido o fabuloso machado de prata que tanto trabalho
deveria dar às imaginações quinhentistas. Por ali, conforme tinham
apurado marujos castelhanos e lusitanos entre gente da beira-mar,
ganhava-se facil acesso ao país do lendario Rei Branco. Do Porto dos
Patos, em Santa Catarina, saira o português Aleixo Garcia, um dos
naufragos da expedição de Solis para a magnifica jornada aos
contrafortes andinos, de onde pudera recolher grande copia de metal
precioso antes de ser sacrificado, no caminho de volta, pelos indios
carijós. Dessa expedição provinham as peças de ouro que outro
componente da armada de Solis, Melchior Ramirez, exibira a Caboto em
Santa Catarina. Um companheiro de Ramirez, Henrique de Montes, tambem
conservava, consigo, grande quantidade de ouro.


E segundo depoimento de uma testemunha, dizia este à gente da expedição
que "nunca ombres fueron tan bien aventurados como los de la dicha
armada, que avia tanta plata y oro en el Rio de Solis, que todos serian
ricos..." (7). Desse mesmo Henrique de Montes sabe-se que Martim Afonso
o levaria consigo como lingua e pratico da terra e não será de admirar
se, conhecedor da aventura de Garcia, foi um dos animadores da entrada
que o futuro donatario mandou sair de Cananéia rumo ao sertão
longinquo, sob o comando de Pero Lobo. Em reconhecimento pelos seus
prestimos, apesar do malogro da jornada, foi ele recompensado com uma
extensa sesmaria, a mesma que, por sua morte, vitima dos indios, seria
dada a um criado do donatario, Brás Cubas.


Se Martim Afonso fixou sua escolha, para a primeira povoação sertaneja,
no interior das terras de São Vicente, não no da Cananéia ou de Santa
Catarina, a razão estaria em que a adjudicação destas terras à Coroa
lusitana tinha menos probabilidades de ser contestada por parte dos
castelhanos, inclinados naturalmente a ver ampliadas, tanto quanto
possivel as areas de sua demarcação. Os portugueses, por sua vez,
pagavam em moeda identica, e vimos como bem mais tarde ainda pretendiam
negar os direitos de seus vizinhos sobre Assunção. Contudo uma prudente
cautela aconselhava Martim Afonso a não trocar o certo pelo duvidoso ou
discutivel, sob pena de deitar a perder todo o seu esforço. Se não
faltava entre castelhanos quem reivindicasse para sua coroa a propria
São Vicente, tais pretensões eram mais indecisas: prova estava no fato
de já existir de longa data no litoral vicentino um povoado de
portugueses, e portugueses que mantinham relações amistosas com o
gentio de serra acima. Tudo isso era de perfeito conhecimento dos
marinheiros espanhóis que frequentavam tais paragens e traficavam com
os moradores ou se utilizavam de seus serviços. A simples presença de
um tal nucleo onde se incluiam, sem duvida, homens longamente
habituados à terra e conhecedores de seus segredos, não era menos, para
Martim Afonso, um motivo de boa esperança. Entre esses homens poderia
ter colhido o capitão informes sobre a possibilidade de comunicações
por terra firme com o Peru ou a Nova Granada. De tal possibilidade há
noticia posterior nos curiosos "apontamentos oferecidos a d. João III
por certo Diogo Nunes acerca das viagens que realizou em terras
peruanas, onde participou da expedição de Mercadillo ao país dos Omagua.


Nesse texto, que Varnhagen encontrou na Torre de Tombo e foi o primeiro
a divulgar, diz-se como do Peru se poderia chegar ao Brasil pelo
Amazonas, e acrescenta-se: "Tambem poderei ir a São Vicente
atravessando pelas cabeçadas do Brasil..." O proprio Varnhagen tentou
indentificar o redator do papel com certo Diogo Nuñez de Quesada que em
1544 andou em Lisboa de volta do Peru. Capistrano de Abreu mostra, no
entanto, em nota à História Geral do Brasil, a improbabilidade de uma
tal identificação. E, por sua vez, associa Diogo Nunes ao mameluco
levado do Brasil por Tomé de Sousa, mencionado em uma carta que o
embaixador Luís Sarmiento de Mendoza escreveu de Lisboa no ano de 1553.
Esse mameluco, filho de um português, tambem fora do Peru ao Brasil
levando noticias de ouro e prata. Como argumento em favor de seu
alvitre, observava Capistrano de Abreu que "é mais facil existir no
mesmo tempo, no mesmo lugar, com os mesmos planos, um só homem do que
dois". E ainda acrescenta: "Se Diogo Nunes descendia de pai português e
mãe india, é provavel que fosse natural da capitania de São Vicente".


Não obstante tamanhas probabilidades, as conjeturas do grande
historiador são prejudicadas pelo seguinte trecho que se lê na relação
acima citada de Martin de Orue: "Del peru vyno por el año pasado un
pasajero natural português que se dize domyngo nunez natural de moron
ques Junto ala Raya de Castilla el qual trajo de veynte a treynta myll
ducados este andando persuadiendo al Rey por una conquysta por el
(Brasil) para por ally entrar a las espaldas de cuzco". Essa passagem
deixa poucas duvidas sobre o assunto. A dificuldade principal para a
identificação entre o Nunez natural de Mourão e o dos "Apontamentos",
ou seja a diferença nos prenomes, torna-se de pouca monta quando
ponderamos que "Domingo" e Diego" são palavras que se podem
eventualmente confundir e que, abreviadas, segundo o uso generalizado
na epoca, não apresentam diferença alguma.


É certo que as comunicações diretas entre São Vicente e o Paraguai,
caminho do Peru, não teriam sido utilizados entre europeus, muito antes
da fundação de São Paulo. Do contrario explica-se mal a informação
escrita depois de 1554 por d. Mencia Calderon, viuva de Juan de
Sanabria, e publicada pelo historiador chileno Morla Vicuña, de que se
podia ir a Assunção, de São Vicente "por cierto camiño nuevo que se
habia descubierto". Justamente por esse caminho tinham querido alcançar
o Paraguai alguns dos naufragos da armada de Sanabria. Nos dois anos
anteriores tinha sido ele trilhado por numerosos castelhanos e
portugueses que, segundo parece, iniciaram atraves dele um rendoso
comercio. Para os castelhanos especialmente, era de grande proveito,
depois do abandono da primeira Buenos Aires, por fornecer ocasião de
negocios lucrativos com os moradores. Tanto que Tomé de Sousa, em carta
de junho de 1553, observava como, em resultado das comunicações
frequentes entre as duas cidades, a alfandega de São Vicente rendera,
no ano anterior, cem cruzados de coisas que traziam a vender os
castelhanos. Já me ocorreu, em outro escrito, apontar alguns nomes de
viajantes que nos são conhecidos através de documentos da epoca.
Pode-se dizer que essas comunicações constituem, propriamente, uma
pré-historia das bandeiras paulistas, ainda que fossem feitas nos dois
sentidos e mais ativamente, talvez, por parte dos castelhanos do que
dos lusitanos. Contudo, inquieto com as consequencias possivelmente
funestas que podiam resultar de tais contatos, principalmente depois
das noticias das supostas minas de prata do Piquiri e do Paraguai, o
primeiro governador geral ordenou que cessasse de todo o transito. E a
partir de então, apesar da viagem clandestina, pelo Tietê, de João de
Salazar e seus companheiros --entre eles os dois filhos de Luís de
Gois-- e, mais tarde, das lutas de Jeronimo Leitão contra os carijós do
sul, cessam quase de todo, por longo tempo, os contatos por terra firme
com o sul. A propria atração do metal precioso que por essa epoca seria
menos forte entre os moradores da capitania do que a caça ao gentio da
terra, deveria incliná-los para outras direções. Era esse o resultado
das pesquisas de Luís Martins e Brás Cubas como o seriam tambem os dois
achados dos dois Sardinhas, pai e filho.


Segundo todas as probabilidades, a um parente do primeiro donatario e
do primeiro governador-geral, a d. Francisco de Sousa, se deverá, já em
principios do seculo seguinte, a intensificação das entradas em outra
direção, que já não será a do Paraguai e do Prata. A bandeira de André
Leão, que data de 1601, dirigiu-se para a região do rio São Francisco.
E o mesmo rumo tomaria a de Nicolau Barreto, segundo os estudos de
Orville Derby, que já hoje nos parecem novamente os mais convincentes,
não obstante as conclusões diferentes de historiadores recentes, que
resultariam no entanto, de um equivoco na leitura da ata da Camara de
São Paulo onde se esclarecem certos pormenores da expedição. E contudo
não se perde a lembrança do caminho do sul, revivida, ao contrario,
depois que, em 1505, quatro soldados vindos de Vila Rica, provincia do
Paraguai, chegam inesperadamente à terra paulista.


Não é improvavel que o projeto inicial de d. Francisco visasse, a
partir de São Paulo, localizar mais facilmente as mesmas minas que
expedições anteriores tinham procurado a partir das capitanias do
centro. É interessante notar-se que, justamente durante seu governo,
segundo se apura de documentos existentes no Arquivo Mediceo, de
Florença, e ainda mal conhecidos, o então grão-duque de Toscana,
Fernando I, pretendeu seriamente criar um estabelecimento no litoral do
Espirito Santo, o outro caminho natural para as minas do sertão remoto.
E é significativo o interesse que o mesmo grão-duque, mostrou pelas
coisas do Brasil, na correspondencia mantida com Baccio de Filicaja,
seu sudito, e companheiro de d. Francisco, que o levara a São Paulo
como engenheiro das minas. Quando e se forem encontradas a descrição e
a relação das suas viagens no Brasil que Baccio escreveu para o
grão-duque, é provavel que venham à luz muitos fatos ainda
desconhecidos ou mal explicados acerca desse periodo (8). É inegavel,
contudo, que a partir de d. Francisco de Sousa, São Paulo estava maduro
para a vocação pioneira dos seus moradores. Vocação que germinara
contudo desde 1532, com a chegada de Martim Afonso, firmara-se em 1554,
quando Manuel da Nobrega, contrariando as opiniões mais
tradicionalistas, fundou a Casa de São Paulo --em sitio onde os indios
pudessem ter melhor sustento-- e se consolida, definitivamente, a
partir de 1560, quando, por ordem de Mem de Sá, são mudados para o
campo os moradores da vila de Santo André.



*Foi mantida a grafia original do texto.