Minha outra estória
Me deixei há muitos anos e nunca mais havia-me visto. Nem de vista, assim de passagem, como a gente vê os vultos.
Algumas vezes o verde, o azul, uma borboleta me trouxeram às origens. Eu os senti passar e cheguei a ter emoções bem vivas. Mas, fora de mim.
Estive com o frio, com o vento, longe da terra, em esperas de asas que se batessem e me transportassem a qualquer lugar.
Pairei, em tempos, nos olhos e na face do mar. Me quis rolado, sem velas, pelas ondas. Sim, eu me quis prancha, barril, latinha, depositado em grão-molhado do ir-e-vir de uma margem. Me pensei recolhido como tesouro-vidro-de-mensagem por uma mãozinha roliça e meiga, que me abrisse. E que depois me levasse correndo às outras mãozinhas, que sempre existem.
E assim, fosse eu parado em baú de lembranças, transportado em carroça de vilarejo para as montanhas do centro. Lá, vendido. Ou trocado por bolinhas de gude.
Escapei. E em cima da árvore virei fruto de passarinho. Nunca bicado. Nunca caido. Recolhido em balaio que espetava, de velho. Em barraca de chão, resto de fim de feira. Ou espremido para dar caldo, me sentindo doce e gostoso de açucar.
Me safei de turras em copos da vida. Olhando sorrisos tortos e falas engasgadas. Atravessando a rua, como um caminho desértico. Até chegar a um oásis, um lombo de camelo, um harem qualquer.
Me tornei comerciante e roubei, e vendi, roubei, vendi. Me fiz rico e avaro. Perseguido e perseguidor. Até parar em outras terras, mais além.
Descobridor de fantasmas. Meti medo. E gargalhei da insuspeitada insegurança dos zombeteiros. Que se gabam junto aos olhares assustados das crianças.
Insisti em entrar em casas de tradição. Quebradas, no jogo da vida, por fantoches que nunca se uniram. Personagens que representavam no cotidiano para platéias mudas e indiferentes. E se pensavam ídolos.
Cansado da invisibilidade, apareci em telas. Ao lado daqueles que representam os homens e os salvam do esquecimento. Maquiado, vivi a conquista das cores e do movimento. Velho fiquei e os papéis foram esquecidos. Que só aos rostos jovens e bem tratados se conferem aplausos.
Peguei estrada, mambembe. Como motorista de caminhão de 50 rodas. Transportava vento. Que vento é mais leve que algodão. Furaram 30 pneus de uma só vez e obriguei-me a armar tenda.
Cacei em mato. Nadei em rio. E um dia fui achado por caçadores de cabeças. Tornei-me um deles. Sacudi âncora e me meti em guerrilhas em paises sem fronteiras.
Cansei-me da babel e deitei em braços suaves e generosos. Passei noites e noites aconchegado em meu refúgio de carinhos.
Adormeci. Em sonho me vi refletido em mim mesmo. E descobri que todas as andanças haviam tirado tanto de mim e colocado tanto que eu estava irreconhecivel diante do meu eu.
Me olhei de novo. Mirei, vi, refleti. Me virei de lado e de costas. Me cocei. Saltei, ri, falei.
E nada.
Continuávamos, eu e meu eu, tão diferentes quanto antes.
Pensei. Pensei violentamente. Pensei tudo que tinha para pensar e mais alguma coisa que havia de reserva. Nada. Eu continuava completamente diferente do meu eu.
Relaxei. Que mais para fazer ?
Aos poucos, tomado de surpresa, fui-me transformando. As imagens do eu e do meu eu passaram a ficar superpostas. Até que se cobriram. Um pequeno tremor de lente ajustada e estávamos lá, parados, completamente únicos. Eu e meu eu. Olhei em torno. Silêncio e branco. Céu, como sempre. Terra, que me apoio, logicamente. Mar, que nunca deixara de existir. Mosquitos, eternos em cada lugar. Pássaros, aves, passarinhos e seus coros de hinos de várias religiões. Deus, aqui e ali. Preso a cada coisa. Multiplicado.
Tudo estava em seus lugares, como nos séculos de antigamente. Menos uma coisa. Os homens. Não conseguia ver os homens, por mais que me esforçasse. Nem sentia seu cheiro. Nem seus passos.
Chocou-me, um tanto, ver todos os utensílios usados pelos homens, sem os homens. Fez-me surpresa uma mesa, bem posta, regada a vinhos e carnes, solitária. E outras tantas, vizinhas, descobertas e descarnadas, sem um pano que as cobrisse.
E assim, a cada passo, revi todas as coisas que os homens quiseram e conquistaram. Exatamente em suas posições de antagonismo. Muito mais de umas, muito menos de outras. Paulatinamente enterradas em seu viver cotidiano. Como fora assim aos homens.
E entendi. Entendi que os homens haviam sido engolidos. E não existiam mais. Sobrara eu e meu eu. Eu que me quis eu, de volta. Sem nada por perto e por longe, que não fossem rastros. Rastros de coisas, não de homens. E me senti só. Solidão do eu e do meu eu preenchida pela ausência dos homens....
8 Comments:
Moço, és um prodígio viu?
Parabéns por mais essa história sobre vc! Linda linda
By Aline Ribeiro, at 9:22 PM
Luis...tem meme pra vc la em casa...
Bjao!
By Anônimo, at 3:41 AM
Uma bela forma de se auto retratar, misteriosa e poética
beijo
By Jana, at 9:29 AM
Perpetuar-se é um floresta encantada que alucina de lucidez e loucura.
Embriagar-se de si pode ser perigoso nisso. Porém, como diz Lispector, a lucidez que é loucura! Ou mais ou menos [o] Isso.
Beijos.
By Paula Calixto, at 9:15 PM
Ai Luis...Quanto ao texto...
me reservo aos comentarios...
rsrs
345678bjokas
By Anônimo, at 10:29 AM
Nossa! Que belo isso, parabéns pela sensibilidade em retratar essa bela historia... Obrigada pelo seu carinho e palavras nos comentários dos meus posts, ando meio atarefada, mas sempre que posso venho espiar... Bjoka tenha um ótimo fim de semana ;)
By Adri, at 3:19 PM
Olá Luiz!
Belo texto!
Bom domingo pra você.
By Lu, at 11:03 AM
Belo texto. Incrível escultura.
Eu conheço o espaço do Nego, no caminho Friburgo/Teresópolis.
Pena que não lhe dispensem a atenção nacional que Nego merece.
By Ramosforest.Environment, at 7:32 PM
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