imperfeito

sexta-feira, setembro 05, 2008

O Jogo da Carona

O conto "O Jogo da Carona", que está no livro Risíveis Amores, do escritor Milan Kundera é para mim uma obra-prima. O conto é perfeito em tudo. Milan é autor de um livro bastante conhecido "A Insustentável Leveza do Ser", que originou um premiado filme dirigido por Philip Kaufman, tendo Daniel Day-Lewis e Juliette Binoche como atores . Curtam o conto:

O Jogo da Carona

1
A agulha do mostrador de gasolina oscilou bruscamente em direção ao zero e o jovem motorista comentou que era espantoso o quanto aquele conversível bebia. - Desde que não fiquemos sem gasolina como da última vez – observou a moça ( de mais ou menos vintes e dois anos), lembrando os vários lugares e que essa desgraça já acontecera. O rapaz disse-lhe que não se importava, pois tudo que lhe acontecia em sua companhia tinha sabor de aventura. A moça não era da mesma opinião: quando ficavam sem gasolina no meio da estrada, a aventura era só para ela, pois ele se escondia e ela tinha que usar e abusar de seu encanto feminino: fazer parar um carro, ser levada até o posto de gasolina mais próximo, depois parar outro carro e voltar com um galão. O rapaz comentou que os motoristas que a apanhavam deviam ser bem antipáticos para que ela se queixasse assim de sua missão. A moça respondeu (com um coquetismo desajeitado) que algumas vezes eles eram bem simpáticos, mas que ela pouco podia aproveitar, ocupada em carregar o galão, e obrigar a deixa-los sem tempo de levar a conversa adiante.

- Monstro! – disse ele. Ela replicou que monstro, se houvesse, seria ele. Deus sabe quantas moças o faziam parar nas estradas quando ele estava sozinho! Continuando a dirigir, ele a abraçou e deu-lhe um beijo na testa. Sabia que ela o amava e que era muito ciumenta. O ciúme não pe um traço de caráter muito simpático, mas se tomarmos cuidado para não abusar dele (se vem acompanhado de recato), ele tem, apesar de todos os inconvenientes , qualquer coisa de comovente. Pelo ou menos ele achava assim. Tendo apenas vinte e oito anos, achava-se velho e imaginava conhecer das mulheres tudo que um homem pode conhecer. O que apreciava na moça sentada a seu lado era justamente aquilo que achava mais raro encontrar nas mulheres: a pureza.

A agulha do mostrador já estava em cima do zero quando viu à direita da estrada uma placa indicando que havia um posto a quinhentos metros. Logo que a viu, ela sentiu-se aliviada. Ele colocou a seta para esquerda e subiu no calçamento diante das bombas de gasolina. Mas um enorme caminhão se enchia por meio de uma grossa mangueira. - Chegamos em má hora – disse ele ao descer. - Vai demorar muito? – perguntou ao homem do posto. - Um minuto! - Eu conheço bem esse minuto. Quis sentar-se de novo no carro mas constatou que a moça descera pela outra porta. -Desculpe! – disse ela - Aonde vai? – perguntou ele propositalmente, para desconcerta-la. Conheciam-se há um ano, mas ela ainda conseguia enrubescer na frente dele e ele gostava muito de seus momentos de pudor, (primeiro, porque isso a diferenciava das mulheres que conhecera antes dela, e segundo, porque conhecia a lei universal da fugacidade que lhe tornava precioso até mesmo o pudor de sua amiga.)

2
A moça detestava ser obrigada a lhe pedir (ele muitas vezes dirigia durante horas, sem interrupção) que parasse diante de um arvoredo. Ela sempre se irritava com a surpresa fingida com que ele lhe perguntava por quê. Ela sabia que seu pudor era ridículo e fora de moda. Em seu trabalho, constatara muitas vezes que caçoavam dela, e a provocavam de propósito por causa de sua decência. Ela sempre enrubescia por antecipação diante da idéia de que iria enrubescer. Muitas vezes desejava sentir-se livre, despreocupada, à vontade em seu próprio corpo, como sabia que era a maioria das mulheres com quem convivia. Até mesmo inventara, para seu uso próprio, um método original de autopersuasão: repetia para si mesma que todo ser humano recebe ao nascer um corpo entre milhões de outros corpos prontos para o uso, como se lhe fosse atribuída morada semelhante a milhões de outras num imenso prédio; que o corpo é, portanto, uma coisa fortuita e impessoal, nada mais do que um artigo de empréstimo e de confecção. Eis o que repetia para si mesma com todas as variações possíveis, tentando inutilmente inculcar em si essa maneira de sentir. Esse dualismo da alma e do corpo lhe era estranho. Ela se confundia muito com seu corpo para não senti-lo com angústia. Essa angústia, ela a sentia até mesmo ao lado do rapaz; ela o conhecia há um ano e estava feliz, sem dúvida porque ele nunca distinguia entre seu corpo e sua alma, de maneira que, com ele, podia viver corpo e alma. A felicidade vinha dessa ausência de dualidade, mas como a desconfiança vive perto da felicidade, ela também estava cheia de desconfianças. Por exemplo, muitas vezes ela pensava que havia outras mulheres mais sedutoras (essas não sentiam angústia) e que seu amigo, que conhecia esse tipo de mulher e não disfarçava isso, um dia a deixaria por uma delas. (É claro que ele dizia já ter conhecido esse tipo de mulher em número suficiente para o resto de seus dias, mas ela sabia que ele era mais jovem do que pensava). Ela o queria inteiramente para si e queria ser inteiramente dele, mas quando mais se esforçava para lhe dar tudo, mais tinha a sensação de lhe recusar, aquilo que proporciona um amor pouco profundo e superficial, aquilo que proporciona um flerte Ela se censurava por não saber conciliar a seriedade com a leveza. Naquele dia, porém, não se atormentava e não pensava em nada. Sentia-se bem. Era o primeiro dia de férias de ambos(quinze dias que durante o ano inteiro tinham sido o ponto de convergência de seus desejos), o céu estava azul (durante o ano inteiro ela perguntara a si mesma com ansiedade, se o céu seria realmente azul) e ele estava com ela. Depois do “Aonde vai você?”, ficou vermelha e saiu correndo sem dizer uma palavra. Contornou o posto, que ficava num descampado à beira da estrada; uns cem metros (na direção que deveriam retomar em seguida) começava uma floresta. Correu para lá e, entregando-se a uma sensação de bem-estar, desapareceu atrás da moita. (Apesar da alegria que proporciona a presença do ser amado, é preciso estar só para senti-la em sua plenitude). Depois saiu da floresta e retornou a estrada; do lugar onde se encontrava, podia-se enxergar o posto. O enorme caminhão-tanque já havia partido. O conversível avançou para a coluna vermelha da bomba de gasolina. Ela caminhava ao longo da estrada, virando-se apenas de vez em quando para ver se ele chegava. Por fim o avistou. Parou e começou a fazer sinais, como alguém que pede uma carona a um carro desconhecido. O conversível freou e parou bem ao lado dela. O rapaz inclinou-se para o vidro, abaixou-o, sorriu e - Para onde a senhorita está indo? – perguntou. -Está indo para Bystrica? – perguntou ela por sua vez com um sorriso sedutor. - Por favor, suba – disse ele abrindo a porta. Ela entrou e o carro seguiu em frente

3
O rapaz ficava sempre contente ao vê-la de bom humor; isso não acontecia com freqüência; o trabalho dela era muito duro (ambiente desagradável, muitas horas extras, sem compensação) e tinha uma mãe doente em casa; quase sempre cansada, não possuía nervos fortes e sentia-se insegura; sucumbia facilmente ao medo e à angústia. Por isso ele acolhia toda demonstração de alegria que partisse dela com a terna atenção de um irmão mais velho. Sorriu-lhe e disse: - Hoje estou com sorte. Há cinco anos que dirijo e nunca dei carona a uma moça tão bonita. A moça recebia com gratidão o menor elogia de seu amigo. Para conservar um pouco o entusiasmo, ela disse:

- Você sabe mentir bem.

-Tenho cara de mentiroso?-Tem cara de quem gosta de mentir para as mulheres – disse ela, e um pouco de sua velha angústia apareceu automaticamente nessas palavras, pois acreditava realmente que seu amigo gostava de mentir para as mulheres.

Em geral ele se irritava com os acessos de ciúme de sua amiga, mas naquele dia foi fácil não dar importância ao fato, pois aquela frase não se dirigia a ele, mas a um chofer desconhecido. Contentou-se com uma pergunta banal:- Isso a incomoda?

-Se eu fosse sua namorada me incomodaria- disse ela e isso era uma sutil lição de moral para o rapaz; mas o final da frase era dirigido a um chofer estranho. –Isso não me incomoda, pois não o conheço.

-Uma mulher sempre perdoa mais facilmente a um estranho do que a um namorado. (Isso era uma lição de moral sutil que, por sua vez, ele dirigia à moça). -Logo, podemos nos entender muito bem, pois somos estranhos um ao outro.

Ela fingiu não perceber a nuança didática subentendida nessa observação e decidiu dirigir-se apenas ao chofer desconhecido.-Para que isso, se vamos nos separar daqui a pouco ?

-Por quê? -perguntou ele.
-Você sabe muito bem que vou descer em Bystrica.
-E se eu descer com você?

Diante dessas palavras ela levantou os olhos para o rapaz e constatou que ele era exatamente como imaginava nos momentos do mais agudo ciúme; assustou-se com a sedução que ele usava para envolvê-la (à moça desconhecida da carona em que ela se transformara) e que lhe caía tão bem. Replicou então com insolência provocante:

-Fico pensando o que você faria comigo!
-Não teria que pensar muito para saber o que fazer com uma moça tão bonita – disse ele galanteamente, e ainda dessa vez, dirigia-se muito mais à moça do que à personagem da carona.

Essas palavras elogiosas foram como se ela o tivesse apanhado em flagrante delito, como uma confissão arrancada por hábil subterfúgio; sentiu-se tomada por um brusco e rápido movimento de cólera e disse: -Você confunde seus desejos com a realidade!

Ele a observava: o rosto teimoso da moça estava crispado; sentiu por ela uma estranha piedade e desejou voltar a encontrar seu olhar habitual, familiar(que ele considerava simples e infantil); inclinou-se para ela, pronunciou docemente seu nome.

Mas ela se desvencilhou e disse :-Acho que você está indo muito depressa!

-Desculpe, senhorita – disse ele desconcertado. Depois fixou os olhos na estrada, sem dizer nada.

4
Mas a moça desistiu desse ciúme tão depressa quanto nele caíra. Tinha bom senso suficiente para saber que tudo não passava de um jogo; achava-se até mesmo um pouco ridícula por tê-lo repelido num movimento de ciúme;esperava que ele não tivesse percebido. Felizmente ela possuía a faculdade milagrosa de modificar logo em seguida o sentido dos seus atos e resolveu que não o repelira por ressentimento mas apenas para continuar o jogo, cuja leveza convinha tão bem a um primeiro dia de férias.

Portanto, ela era mais uma vez a moça da carona que acabara de repelir o chofer muito atrevido, mas apenas para atrasar a conquista e torna-la ainda mais saborosa. Voltou-se ligeiramente para ele e disse com voz carinhosa:- Não queria magoá-lo senhor.

- Desculpe, não vou mais tocar em você - disse ele.

Ele ficou zangado porque ela não o compreendera e se recusara a ser ela mesma no momento em que ele o desejara; e já que ela insistia em conservar a máscara, ele transferiu a raiva para a carona desconhecida que ela representava; nesse momento descobriu o personagem do seu papel: desistiu dos elogios que eram uma forma disfarçada de agradar à amiga e pôs-se a representar o homem duro que, em suas relações com as mulheres, acentua os aspectos mais brutais da virilidade: a vontade, o cinismo, a segurança.

Esse papel estava em contradição total com a terna solicitude que sentia por ela; é verdade que antes de conhece-la tinha se mostrado menos delicado com as mulheres, mas mesmo então não tinha nada do homem duro e satânico, pois não se caracterizava nem pela força de vontade nem pl]ela ausência de escrúpulos. No entanto, se não se assemelhava a esse tipo de homem, por isso mesmo desejara parecer-se com ele. Certamente é um desejo bastante ingênuo, mas o que fazer, se os desejos pueris escapam a todas as armadilhas do espírito adulto e às vezes sobrevivem até a mais longínqua velhice. E esse desejo pueril aproveitou a oportunidade para encarnar o papel que lhe era proposto.

A superioridade sarcástica do chofer convinha à moça: liberava-a de si mesma. Pois ela mesma era, antes de tudo, o ciúme. A partir do momento em que seu amigo deixou de exibir seus talentos de sedutor para mostrar apenas o rosto fechado, o ciúme se aplacou. Ela podia esquecer de si mesma e entregar-se ao seu papel.

Seu papel? Qual? Um papel extraído de má literatura. Ela havia parado o carro, não para ir aqui ou ali, mas para seduzir o homem sentado ao volante; a moça da carona não era senão uma vil sedutora que sabia usar admiravelmente seus encantos. E entrou na pele desse ridículo personagem de romance com uma facilidade que a surpreendeu e a encantou. Foi assim que ficaram um ao lado do outro: um chofer desconhecido e uma carona desconhecida.

5
O que o rapaz mais lamentava não ter encontrado na vida era a despreocupação.A estrada de sua vida era traçada com o mais implacável rigor. O trabalho não se limitava a absorver-lhe oito horas diárias; impregnava o resto do seu dia com o tédio obrigatório das reuniões e dos estudos em casa, e invadia sua escassa vida privada, que nunca ficava preservada e que muitas vezes fora alvo de comentários e discussões públicas; pairavam sobre ele os olhares de inúmeros colegas, homens e mulheres. Até mesmo as duas semanas de férias não traziam nenhuma sensação de libertação e de aventura; também se estendia sobre elas a sombra cinzenta de um rigoroso planejamento. Por causa da escassez de alojamentos para férias, ele fora obrigado a reservar com seis meses de antecedência um quarto nos Tatras, e para isso fora necessária uma recomendação do Comitê Sindical da empresa em que trabalhava, cujo espírito onipresente não parava de seguir seus gestos e seus atos.

Havia acabado por aceitar tudo isso, afinal, mas às vezes tinha a horrível visão de uma estrada em que era perseguido sob os olhos de todos, sem nunca poder se desviar. Precisamente nesse momento essa visão apareceu e a estrada imaginária confundiu-se com a estrada real em que andava; a estranha e rápida associação de idéias provocou nele uma súbita extravagângia:

- Aonde você disse que ia?
- A Bystrica.
- E o que vai fazer lá?
- Tenho um encontro.
- Com quem?
- Com um senhor.

O carro acabava de chegar a um grande cruzamento. O rapaz diminuiu a marcha para elr a placa com as indicações; em seguida tomou a direita.

-E o que acontecerá se você não for ao encontro?
-Será culpa sua e você terá que tomar conta de mim.
-Não percebeu que acabei de tomar a estrada de Nove Zamky?
- É mesmo? Você perdeu a cabeça!
-Não tenha medo! Eu tomo conta de você – disse ele.

O jogo assumiu logo um novo aspecto. O carro se afastara não apenas do destino imaginário – Bystrica – como também do verdadeiro destino para o qual se dirigia naquela manhã: os Tatras e o quarto reservado. A existência representada invadia a existência real. Ele se distanciava a um só tempo de si mesmo e do caminho rigoroso do qual até então nunca se afastara.

- Mas você me disse que ia aos Tatras – surpreendeu-se ela.
- Vou aonde quero, senhorita. Sou um homem livre, faço o que entendo e o que me agrada.

A noite começava a cair quando chegaram a Nove Zamky.O rapaz nunca tinha estado lá e precisou de um bom tempo para se orientar. Parou várias vezes para perguntar às pessoa onde ficava o hotel.As ruas estavam, esburacadas e levaram uns quinze minutos para chegar ao hotel, que afinal ficava bem perto (segundo as pessoas que informaram), depois de muitas voltas e desvios. O hotel nada tinha de convidativo, mas era o único da cidade e o rapaz estava cansado de dirigir. - Espere aí. – disse ele saindo do carro.

Assim que saiu, voltou, é claro a ser ele mesmo. De súbito, desagradou-lhe o fato de estar num lugar totalmente imprevisto ainda mais que não estava ali obrigado por ninguém, nem mesmo por vontade própria. Ele se censurava a extravagância mas depois resolveu não se preocupar mais: o quarto dos Tratas podia esperar até o dia seguinte, e que mal havia em festejar esse primeiro dia de férias com um pouco de imprevisto... Atravessou a sala de jantar – enfumaçada, repleta, barulhenta – e perguntou onde era a recepção. Apontaram para o fundo do hall, ao pé da escada, onde uma loura atarefada pontificava sob um quadro cheio de chaves, conseguiu com dificuldade a chave do último quarto livre.

Ao ficar sozinha, a moça também saiu do seu papel. Não estava nem um pouco aborrecida com a troca de itinerário. Tinha confiança demais no amigo para desconfiar do menor dos seus atos. Mas de repente pensou nas outras moças que ele encontrara nas viagens e que tinham ficado esperando por ele no carro, como ela estava agora. Coisa estranha, esse pensamento não a fazia sofrer, sorria à idéia de que era uma desconhecida para ele, irresponsável e indecente, uma dessas mulheres que lhe despertavam tanto ciúme., acreditava assim suplantá-las, acreditava ter encontrado os meios de apoderar-se de suas armas, de oferecer finalmente ao amigo o que até agora não lhe soubera dar, a despreocupação, o despudor, a liberdade, sentia uma especial satisfação ao pensar que ela sozinha podia ser todas as mulheres e podia assim (ela sozinha) açambarcar toda a atenção do amigo e absorvê-lo inteiramente.

O rapaz abriu a porta do carro e levou a moça para a sala do restaurante. Num canto, no meio da desordem, da sujeira e da fumaça, ele descobriu a única mesa vazia.

7
- Agora vamos ver como é que você vai cuidar de mim – disse a mola num tom provocante.
-Quer tomar um aperitivo? - perguntou o rapaz.

Ela apreciava muito pouco a bebida alcoólica bebia um pouco de vinho e gostava de vermute.Mas dessa vez respondeu de propósito -Uma vodca.

-Muito bem – disse ele - , espero que não se embriague.
-E daí? Está com medo?

Ele não respondeu e chamou o garçom, pediu duas vodcas e dois bifes.Logo depois o garçom colocou diante deles uma bandeja com dois copos.

Ele levantou o copo dizendo - Saúde!

-Será que você não pode encontrar nada mais original?

Havia algo no jogo da moça que começava a irritá-lo, agora que estavam frente a frente compreendeu que, se ela lhe parecia uma outra, não era apenas por causa de suas palavras, mas porque ela estava tão inteiramente metamorfoseada, nos gestos e na mímica, que se parecia, com repugnante fidelidade, àquele tipo de mulher que ele conhecia muito bem e que lhe inspirava ligeira aversão.

Portanto, segurando o copo na mão esquerda, modificou seu brinde- Bem, não vou beber exatamente à sua saúde, mas à saúde da sua espécie, que alia às melhores qualidades do animal os piores defeitos do ser humano.

-Quando você fala da minha espécie, está falando de todas as mulheres? perguntou ela.
-Não, apenas das que se parecem com você.
-De qualquer maneira, não acho muito espirituoso comparar uma mulher a um animal.
-Bem – retrucou ele, segurando o copo com braço levantado -, então vou beber à saúde de suas semelhantes, mas à sua alma, concorda ? À sua alma que se incendeia quando desce da cabeça até o ventre e que se apaga quando torna a subir do ventre para a cabeça.

Ela levantou o copo. -Entendido, à minha alma que desce para o meu ventre.
-Ainda uma pequena retificação – disse ele - Bebamos de preferência a seu ventre, que para onde desce a sua alma.
-Ao meu ventre – disse ela, e seu ventre, que ela acabava de designar pelo nome, parecia responder a um apelo, pois ela sentia cada milímetro de sua pele.

Em seguida o garçom trouxe os bifes. Eles pediram uma segunda vodca e água mineral (dessa vez beberam aos seios da moça). E a conversa prosseguiu num tom estranhamente frívolo. Ele ficava cada vez mais irritado por ver até que ponto sua amiga sabia comportar-se nesse personagem, pensava ele, é porque na verdade ela é assim, no fundo, não era a alma de uma outra, surgida não se sabe de onde, que se insinuava sob a pele dela, quem ela encarnava dessa maneira era ela mesma, ou pelo ou menos a parte de seu ser que ela mantinha habitualmente escondida sob sete chaves, mas que a desculpa do jogo tinha feito sair da gaiola, ela pensava sem dúvida que se negava ao jogar esse jogo. Mas não seria exatamente o contrário? Não seria o jogo que a transformava nela mesma? que a libertava? Não, à sua frente não havia outra mulher no corpo da amiga, era ela mesma, a própria amiga, e mais ninguém. Olhava-a com crescente repugnância.

Mas não era apenas repugnância. Quanto mais ela lhe parecia estranha mentalmente, mais ele a desejava fisicamente. A estranheza da alma singularizava que fazia desse corpo de mulher, ou melhor, era a estranheza que fazia desse corpo, um corpo, como se até então aquele corpo tivesse existido para ele apenas no nevoeiro da compaixão, da ternura, da solicitude, do amor, e da emoção, como se estivesse perdido nesse nevoeiro (sim, como se o corpo estivesse perdido!). Pela primeira vez o rapaz acreditava ver o corpo da amiga.

Depois da terceira vodca com água gasosa, ela se levantou e: - Desculpe – disse com um sorriso sedutor.

-Posso perguntar aonde a senhorita vai?
-Mijar, com sua licença. – e ela se encaminhou para um pequeno compartimento forrado de veludo no fundo do restaurante.

8
A moça gostou de deixá-lo aturdido com essa palavra – certamente bem anódina -, mas que ele nunca a ouvira pronunciar, nada, na sua opinião, definia melhor a personalidade da mulher que ela encarnava do que a ênfase colocada nessa palavra, sim, ela estava satisfeita, estava em excelente forma, o jogo a fascinava, trazia-lhe novas sensações, por exemplo, o sentimento de uma irresponsável despreocupação.

Ela, que sempre temia pelo dia seguinte, sentia-se de súbito inteiramente relaxada.Essa vida de uma outra em que de repente mergulhara era uma vida sem pudor, sem determinações biográficas, sem passado e sem futuro, sem compromisso. Era uma vida excepcionalmente livre.A moça da carona podia tudo, tudo lhe era permitido, dizer tudo, tudo fazer, tudo experimentar.

Atravessava a sala e reparou que estava sendo observada de todas as mesas, isso também era uma sensação nova que não conhecia, o prazer sem pudor que lhe proporcionava seu corpo.Até então ela nuca conseguira libertar-se inteiramente da adolescente de quatorze anos que tem vergonha dos próprios seios e que sente uma desagradável impressão de indecência com a idéia de que eles se salientam do corpo, de que são visíveis. Se bem que tivesse orgulho de ser bonita e bem feita, esse orgulho era imediatamente corrigido pelo pudor. Sabia que a beleza feminina age em primeiro lugar pelo seu poder de provocação sexual e isso para ela, era uma coisa desagradável, desejava que seu corpo se destinasse apenas ao homem que amava, quando os homens olhavam seu busto na rua, parecia que esse olhares sujavam um pouco sua intimidade mais secreta que pertencia apenas a ela e a seu amante. Mas agora era a garota da carona a mulher sem destino, libertara-se das ternas correntes do amor e começava a tomar intensa consciência de seu corpo, e esse corpo mais a excitava na medida em que eram desconhecidos os olhares que o observavam.

Ao passar perto da última mesa, um homem, entre um vinho e outro, querendo com certeza destacar-se por seu conhecimento do mundo, interpelou-a em francês -Combien, mademoiselle?

A moça compreendeu. Inflava o busto e vivia intensamente cada movimento de seus quadris. Desapareceu atrás da porta acolchoava de veludo.

9
Era um jogo engraçado. Era estranho, por exemplo, que o rapaz, embora perfeitamente colocado no papel do motorista desconhecido, não deixasse sequer por um momento de ver sua amiga na personagem da garota da carona. Tal fato, justamente, lhe era penoso, ver sua amiga ocupada em seduzir um desconhecido e ter o triste privilégio de assistir à cena, ver de perto o aspecto que ela apresentava e o que ela iria dizer quando o enganasse (quando fosse enganá-lo), tinha a honra paradoxal de servir, ele mesmo, de incentivo à sua infidelidade.

O pior era que ele a adorava mais do que amava, sempre sentira que a moça tinha realidade apenas dentro dos limites da fidelidade e da pureza e que, além desses limites, ela deixaria de ser ela mesma assim como a água deixa de ser água a partir do ponto de ebulição. Quando a via atravessar essa temível fronteira com uma elegância tão natural, sentia crescer sua raiva.

Ela voltou do toalete queixando-se: -Um sujeito me disse “Quanto senhorita? “
-Não fique espantada! Você esta com aparência de puta.
-Sabe que não estou nem ligando?
-Você devia ter ficado com o tal sujeito!
-Mas estou com você.
-Pode encontrá-lo mais tarde.Basta combinar com ele.
-Ele não me agrada.
-Mas não iria absolutamente incomodá-la ter muitos homens na mesma noite.
-Por que não? Desde que sejam bonitões.
-Você prefere um depois do outro ou todos ao mesmo tempo?
-As duas coisas.

A conversa tornava-se cada vez mais escabrosa. Ela estava um pouco chocada, mas não podia protestar. No jogo, o homem não é livre, para o jogador o jogo é uma armadilha, se não se tratasse de um jogo, e se fossem um para o outro dois desconhecidos, a garota da carona já poderia ter-se ofendido há muito tempo e partir,mas não há meios de escapar a um jogo, o time não pode fugir do campo antes do fim, os peões do jogo de xadrez não podem sair das casas do tabuleiro, os limites do campo são intransponíveis. A moça sabia que era obrigada a aceitar qualquer coisa pelo simples fato de que se tratava de um jogo. Ela sabia que quanto mais longo o jogo fosse levado, mais seria um jogo e mais seria obrigada a jogar docilmente. De nada adiantaria pedir socorro à razão e avisar a alma espantada para guardar distância e não levar o jogo a sério. Justamente por ser um jogo, a alma não sentia medo, não se defendia e se abandonava ao jogo como a uma narcose.

O rapaz chamou o garçom e se levantou. -Vamos embora – disse ele
-Aonde? perguntou ela, fingindo não entender.
-Não faça perguntas!Venha!
-Olhe como você fala comigo!
-Como falo a uma puta.

10
Subiram uma escada mal iluminada, no alto, um grupo de homens um pouco embriagados esperava em frente ao banheiro. Ele a abraçou pelas costas de maneira a ter um de seus seios na palma da mão. Os homens que estavam perto do banheiro perceberam o fato e começaram a dar gritos. Ela quis se desvencilhar, mas ela mandou que se calasse. -Fique quieta! Disse ele, o que os homens acolheram com solidariedade brutal e alguns ditos obscenos dirigidos à moça. Chegaram ao primeiro andar. Ela abriu a porta do quarto e acendeu a luz. Era um quartinho com duas camas, uma mesa, uma cadeira e uma pia. O rapaz empurrou o ferrolho da porta e se virou para a moça. Ela ficou diante dele numa atitude provocante, com uma sensualidade insolente nos olhos. Ele a olhava e se esforçava para descobrir por trás dessa expressão lasciva os traços familiares que amava com ternura. Era como olhar duas imagens na mesma objetiva, duas imagens superpostas aparecendo transparentes uma sobre a outra. Estas duas imagens superpostas diziam-lhe que sua amiga podia ter tudo dentro de si, que sua alma era terrivelmente amorfa, que a fidelidade podia existir nela tanto como a infidelidade, a traição como a inocência, a sedução como o pudor, essa mistura selvagem lhe parecia tão repugnante quanto a mistura de um depósito de lixo. As duas imagens superpostas apareciam sempre transparentes, uma embaixo da outra, e o rapaz compreendia que a diferença entre sua amiga e as outras mulheres era uma diferença muito superficial, que no mais profundo do seu ser sua amiga era semelhante às outras mulheres, como todos os pensamentos, todos os sentimentos, todos os vícios possíveis, o que justificava suas dúvidas e seu ciúmes secretos, que a impressão de contornos delimitando a sua personalidade não era senão uma ilusão a que o outro sucumbia, aquele que a olhava, isto é, ele mesmo. Ele pensava que essa moça, tal como a amava, não era senão um produto de seu desejo, de seu pensamento abstrato, de sua confiança, e que sua amiga, tal como era realmente, era essa mulher que estava ali, desesperadamente outra, desesperadamente estranha, desesperadamente polimorfa. Ele a detestava.

-O que você está esperando? Tire a roupa!

Ela inclinou a cabeça coquetemente e disse -É preciso?

Este tom ecoava em seu ouvido um eco muito familiar como se outra mulher já lhe tivesse dito isso há muito tempo, mas nem sabia mais qual delas. Queria humilhá-la. Não à moça da carona, mas a ela, sua amiga. O jogo acabava se confundindo com a vida. O jogo de humilhar a moça da carona não era senão um pretexto para humilhar sua amiga. Ele esquecera que era um jogo e detestava a moça que estava ali diante dele. Encarou-a, depois tirou uma nota de cinqüenta coroas e lhe estendeu - Chega.?

Ela pegou as cinquenta coroas e disse -Você não é muito generoso.
-Você não vale mais do que isso – disse ele

Ela encostou o corpo no dele: - Você está se comportando mal comigo. Tem que ser mais gentil. Faça um esforço!

Ela o abraçou, estendendo os lábios para ele. Mas ele pôs os dedos em sua boca, afastando-as com suavidade. -Só beijo as mulheres que amo.

- E a mim você não ama?
-Não.
-Quem você ama?
-Isso é da sua conta...Tire a roupa!

11
Nunca ela se despira assim. A timidez, a sensação de pânico no mais profundo de seu ser, a vertigem, tudo aquilo que sentia quando se despia em frente ao rapaz (e que ela não podia dissimular na escuridão), tudo aquilo desaparecera. Permanecia diante dele, segura de si, insolente, em plena claridade, e surpresa por descobrir de repente gestos até então desconhecidos ao tirar a roupa de forma lenta e embriagadora. Atenta a seus olhares, ela tirava a roupa, uma peça depois da outra, amorosamente, saboreando cada etapa desse despojamento.

Mas em seguida, quando ficou completamente nua diante dele, pensou que o jogo não podia continuar, que ao se despojar de suas roupas havia tirado a máscara e estava nua, o que significava que era apenas ela mesma e que o rapaz precisaria tomar a iniciativa de vir na sua direção, fazer um gesto com a mão, um gesto que apagaria tudo e a partir do qual só haveria lugar para suas mais íntimas carícias. Ela estava nua diante dele e havia parado de jogar, sentia-se embaraçada, e o sorriso que na realidade pertencia somente a ela apareceu em seu rosto, um sorriso tímido e confuso.

Mas ele permanecia imóvel, não fazia nenhum gesto para acabar com o jogo. Não via seu sorriso,que no entanto era tão familiar, só via diante de si o belo corpo desconhecido de sua amiga, que ele detestava. A raiva tirava de sua sensualidade todo o verniz sentimental. Ela quis se aproximar, mas ele disse - Fique onde está, para que eu a veja bem. Desejava apenas uma coisa, tratá-la como uma prostituta. Jamais conhecera uma prostituta e a idéias que fazia delas lhe fora transmitida pela literatura e por ouvir falar. Foi essa a imagem que evocou, e a primeira coisa que visualizou foi uma mulher nua com meias pretas, dançando na tampa lustrosa de um piano. Não havia piano no quarto do hotel, apenas uma pequena mesa encostada na parede, coberta com uma toalha. Mandou que sua amiga subisse nela. Ela fez um gesto de súplica, mas...-Você foi paga para isso – disse ele.

Diante da implacável decisão que percebeu em seu olhar, ela se esforçou para prosseguir com o jogo, mas não tinha mais forças. Com lágrimas nos olhos, subiu na mesa. A mesa media quando muito um metro de comprimento por um de largura e estava bamba de pé em cima dela, sentia medo de perder o equilíbrio.

Ele estava satisfeito de ver esse corpo nu que se elevava diante de si, e cuja insegurança medrosa fazia com que se tornasse ainda mais tirânico. Queria ver esse corpo em todas as posições e sob todos os ângulos, como imaginava que outros homens o tinha visto e o veriam. Tornara-se grosseiro e sensual.Dizia palavras que ela nunca o ouvira pronunciar. Ela queria resistir, escapar desse jogo, chamou-o pelo nome, mas ele a obrigou-a a calar-se, dizendo que ela não tinha o direito de lhe falar nesse tom familiar. Acabou cedendo, transtornada, quase em pranto.Inclinou-se para a frente depois abaixou-se, obedecendo ao desejo dele, fez a saudação militar, depois um requebro para dançar um número de twist, mas, num movimento brusco,fez a toalha deslizar e quase caiu. Ele a amparou e a levou para a cama.

Abraçou-a. Ela ficou contente, pensando que o jogo sinistro terminara, que de novo iam ser como eram na realidade, quando se amavam. Quis encostar os lábios nos dele, mas ele a afastou, repetindo que só beijava as mulheres que amava. Ela explodiu em soluços. Mas nem conseguiu chorar, porque a furiosa paixão do amigo se apoderou pouco a pouco do seu corpo, terminando por abafar os gemidos de sua alma. Logo depois havia apenas dois corpos perfeitamente unidos na cama, sensuais e estranhos um ao outro. O que acontecia agora era o que ela sempre temera mais que tudo no mundo, o que sempre evitara: o amor sem sentimento e sem amor. Sabia que atravessara a fronteira proibida, além da qual se comportava sem a menor reserva e em total comunhão. Apenas experimentava, num recôndito do seu espírito, uma espécie de medo ao pensar que nunca sentira tal prazer e tanto prazer como dessa vez. – além dessa fronteira.

12
Depois tudo acabou. O rapaz afastou-se dela e puxou o comprido fio que pendia sobre a cama.A luz apagou-se. Ele não queria ver o rosto dela, sabia que o jogo terminara, mas não tinha nenhuma vontade de voltar ao universo de suas relações habituais. Tinha medo dessa volta. Permanecia ao lado dela no escuro, evitando qualquer contato com seu corpo.

Logo depois ouviu soluços abafados, num gesto tímido, infantil, a mão da moça voltou a tocá-lo, e uma voz se fez ouvir, suplicante, entrecortada de soluços, que o chamava pelo nome e dizia -Sou eu, sou eu.

Ele se calava, imóvel, e compreendia muito bem a triste inconsistência da afirmação de sua amiga, na qual o desconhecido se definia pelo mesmo desconhecido.

Os soluços se transformaram num pranto sentido, a moça ainda repetiu por muito tempo esta comovente tautologia.

-Sou eu, sou eu...

Então ele começou a pedir socorro à compaixão (e teve que chamá-la de muito longe, pois ela não estava em nenhum lugar ao alcance de sua mão) para poder consolar a moça. Tinham ainda pela frente treze dias de férias.

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