“Eu continuava andando sozinha na rua, pensando em meu piloto que dormia... Parecia uma imbecil caminhando sem rumo, esbarrando nos transeuntes, meio perdida, quando de repente um homem me pegou pelo braço e gritou em meu ouvido:
- Vamos, suba no carro.
- Ah! é o senhor, Tonio?
- Sim, sou eu. Procurei-a por toda parte. Parece uma mendiga, andando toda curvada. Perdeu alguma coisa?
- Acho que perdi minha cabeça.
Ele riu com vontade:
- Foi meu motorista quem a reconheceu, eu não o teria conseguido. Por que estás tão triste? Pareces uma órfã.
- É verdade. Pareço triste porque não tenho coragem de fugir do senhor. E acho que não quero ouvir a verdade; para o senhor não passo de um devaneio, o senhor gosta de brincar com a vida, não tem medo de nada, nem mesmo de mim. Mas fique sabendo que não sou um objeto, nem uma boneca: eu não mudo de rosto todos os dias, gosto de sentar-me todo dia no mesmo lugar, em minha cadeira, e sei muito bem que o senhor não suportaria isso, pois gosta de estar sempre mudando. Se me disser com sinceridade que a sua carta e a sua declaração são um ensaio sobre o amor, um conto, um sonho de amor, não ficarei chateada. O senhor é um grande poeta, um cavaleiro alado, um belo rapaz, forte, inteligente, e não pode zombar de uma pobre moça como eu, que não tem outro tesouro senão o seu próprio coração e a sua vida.
- Que estás dizendo? - replicou ele. - Achas então que tenho muitas qualidades para ser teu marido? Por que, tão jovem, desconfias assim da vida? Por que és tão amarga sobre a doçura de viver? Depois de Correio Sul, não escrevi mais nada... A não ser essa carta de quarenta páginas para ti... E direi que te admiro, que te amo... Todos os dias pedirei à senhora que seja minha companheira por toda a vida. Preciso da senhora. Sei que a senhora será minha mulher, posso jurar quanto a isso.
- Estou muito emocionada... Se acreditasse poder proporcionar-lhe algo de bom, de belo, não hesitaria talvez em casar-me novamente ... mas não tão rápido... Tonio, tem certeza que deseja uma mulher para toda a vida?
-Consuelo eu a quero para toda a eternidade”.
(Consuelo Suncin de Sandoval no livro Memórias de uma Rosa)
Consuelo, escultora e pintora, nasceu em El Salvador, no inicio do século passado, de família rica, filha de um dos reis do café à época. Guapa, inteligente, sensual, vulcânica e, ao mesmo tempo frágil, casou-se cedo com um mexicano e aos 22 anos estava viúva. Tornou a casar-se, em Paris, alguns anos depois com um escritor milionário, cônsul da Guatemala na França. Viveram prosperamente numa magnífica propriedade em Nice, na Riviera Francesa. Quis a vida que ficasse novamente viúva aos 27 anos, com uma imensa fortuna, independente, com hábitos pouco usuais para uma mulher do seu tempo, fuma, dirige automóveis, viaja por todo o mundo. As más línguas a rotulam de condessa de mentirinha.
Numa viagem a Buenos Aires conheceu um homem de quase 2 metros de altura, audacioso e aventureiro aviador, com jeito de garotão, que tocava piano, que a pediu em casamento no mesmo dia. Ao conhecê-la, esse homem, escreve para ela uma carta de 40 páginas.
Antoine-Jean-Baptiste-Marie-Roger Foscolombe de Saint-Exupéry, filho do conde e da condessa de Foscolombe, cujo apelido na França era Saint-Ex, e que os amigos chamavam de Tonio, foi escritor, ilustrador, piloto da Sociedade Latécoère de Aviação (o primeiro serviço de correio aéreo do mundo) e piloto de guerra durante a Segunda Guerra Mundial. Ficou órfão de pai aos 4 anos. Talvez por isso tenha sido um jovem tímido e introspectivo.
Saint-Ex apaixona-se imediatamente por Consuelo e a convida a voar. Acima das nuvens desliga o motor do avião e ameaça só religá-lo após ganhar o beijo dela. Assim começa uma história de dois boêmios que se entregam aventuradamente à vida. A relação é tormentosa, plena de rompimentos, afastamentos, distâncias, reaproximações, traições e amor.
Consuelo escreve:
“Mas agora é tarde no dia e ainda estás longe. Sentar-me-ei no alpendre à tua espera e talvez apareças quando eu já tiver adormecido. Que delícia pensar que neste momento todos os teus passos te aproximam da nossa casa.”
“Saboreio as viagens que fazes porque sempre te reencontro belo como uma árvore. às vezes, é claro, deixas-te queimar pela neve. Mas chega sempre o dia em que te sentas à minha mesa, prisioneiro dos meus olhos, ao alcance dos meus gestos.”
“O amor é para ti uma coisa natural sobre a qual não se deve falar muito. Nunca são muitas as palavras, e raramente são tuas. Os poetas já inventaram quase tudo talvez sobre o amor. Mas falas tão pouco de ti, e quando partes levas contigo todo o teu ser, tão completamente, tão totalmente. Não te esqueces de parcela alguma de ti, em lugar algum.”
“Adivinho, pois creio. Creio que a ternura que abandonas de cada vez que te afastas, tem cada vez mais o valor de um tesouro e que um sentimento de mágoa vai crescendo em ti, no momento em que o enterras debaixo da terra. A minha casa é aqui dentro de ti, a minha fonte são os teus olhos, só eles me saciam, dizes antes de partir. E no meio da noite, abraças-me, apertas-me com ternura como se eu fosse um pequeno animal doméstico, e sussurras não sei ser teu, perdoa-me.”
“Nunca sei muito bem como me arrumar em ti ou na cômoda dos meus pensamentos. Ofereço-te o rir dos meus lábios, enceno a tua fantasia para que escaves sempre e revolvida a terra me encontres. E durante alguns dias em muitos anos, vamos vivendo. Intensamente. Nunca em paz. Para sempre.”
“Pareço vaidosa nas coisas pequenas. Mas sou humilde nas grandes. Pareço egoista nas coisas pequenas, mas nas grandes sou capaz de dar tudo. Até a vida. Pareço muitas vezes impura nas coisas pequenas, mas só sou feliz na pureza.”
Estavam morando em Nova Iorque quando Saint-Ex escreve O Pequeno Príncipe. Tudo indica que Consuelo seja a Rosa, contudo, Tonio não torna isso evidente, o que causa enorme desilusão a Consuelo.
Lembram ? O Pequeno Príncipe morava num pequeno planeta, do tamanho de uma casa, onde só cabiam três vulcões, dois ativos e um extinto, e uma flor. Essa flor, uma rosa, era lindíssima, frágil e orgulhosa. Foi o orgulho da rosa que transformou a tranqüilidade daquele pequeno mundo e levou o Pequeno Príncipe a fazer uma viagem pelo espaço que o traz à Terra.
Corria o ano de 1943 quando o livro foi publicado.
Em julho de 1944, aos 40 anos de idade, Saint-Ex some, quando o avião militar que pilotava, num vôo de reconhecimento entre as cidades de Grenoble e Annecy na França, é abatido pela aviação alemã (os destroços do seu avião foram encontrados em 2004 perto da costa de Marselha).
Agora, neste ano de 2009, está sendo publicado um livro que contém algumas cartas de Saint-Ex a uma mulher por quem se apaixonara no seu último ano de vida.
“Em maio de 1943, Antoine de Saint-Exupèry, depois de viver mais de dois anos nos Estados Unidos, onde publicou notavelmente O Pequeno Príncipe volta a Argel para tentar
encontrar o campo de ação militar de sua esquadrilha, o grupo de reconhecimento aéreo 2/33.
Um dia, no trem que o conduzia de Oran a Argel, conhece uma moça de 23 anos, originária do leste da França, casada, habitante de Oran, oficial e condutora de ambulância da Cruz Vermelha. Apaixona-se imediatamente por ela, e os dois se relacionam durante o último ano de sua vida.” (do livro o Amor do Pequeno Príncipe, Cartas a uma desconhecida).
Também nesse pequeno livro, cujos textos são ilustrados por Saint-Ex como se houvessem sido escritos pelo Pequeno Príncipe, não há evidências de que a flor seja essa sedutora desconhecida.
Li quase todos os livros de Saint-Ex porque ele é um dos meus heróis. Meus heróis sempre foram aqueles malucos que deram sua vida em prol da humanidade. Desdenho os “heróis” que enfrentam enormes desafios para si mesmos, para baterem recordes em nome de seus orgulhos pessoais.
Saint-Ex era de família nobre, rica, poderia ter ido pegar ondas gigantes, caçar elefantes ou baleias, correr maratonas, atravessar a nado os oceanos, escalar os himalaias, mas preferiu ser aviador do correio aéreo. Junto com seus amigos, Bury, Guillaumet, Lécrivain, Mermoz... enfrentou as rotas sobre os desertos, sobre as cordilheiras, em aviões primitivos, nos quais o piloto em dias de tempestade tinha que colocar a cabeça para fora da carlinga para “ver” por onde andava. Quantas e quantas vezes esses heróis tiveram que fazer aterrissagens forçadas ou caíram no alto das montanhas ou nas dunas dos desertos ! Os mouros do deserto do Saara o chamavam de “senhor das areias”
Reproduzo um longo trecho de Terra dos Homens:
“Lembro-me bem de uma chegada de Bury, que mais tarde morreu em Corbières. O velho piloto sentara-se no meio de nossa turma e comia pesadamente sem dizer nada, os ombros ainda abatidos pelo esforço. Era uma dessas notes más em que, de uma ponta à outra da linha, o céu está entupido e todas as montanhas parecem ao piloto rolar na escuridão (...).
Encarei Bury, engoli um pouco de saliva, e ousei afinal perguntar se o vôo havia sido duro. Bury não me ouvia, a testa enrugada, a cabeça inclinada sobre o prato. A bordo dos aviões descobertos, nos dias de mau tempo, era preciso se inclinar fora do parabrisa para ver melhor, e o chicote da ventania fustigava longamente as orelhas. Afinal Bury ergueu a cabeça, pareceu me ouvir, lembrar-se e, bruscamente, soltou uma risada clara. E aquele riso maravilhou-me porque Bury ria pouco. Aquele riso breve que lhe iluminava o cansaço. Não deu nenhuma outra explicação de sua vitória: baixou a cabeça e pôs-se novamente a mastigar em silêncio. Mas, no ambiente cinza do restaurante, entre os pequenos funcionários que ali descansavam de suas humildes fadigas cotidianas, aquele companheiro de ombros pesados me pareceu de uma estranha nobreza; sob a rude crosta do homem sentia-se o anjo que havia vencido o dragão”. (...)
“Veio enfim a tarde em que, por minha vez, fui chamado ao gabinete do diretor. Ele me diz simplesmente:
- O senhor vai partir amanhã” (...)
“Quando sai do escritório sentia um orgulho pueril. Ia também ser, a partir daquela madrugada, responsável por um grupo de passageiros, responsável pelo correio da África. Mas sentia, ao mesmo tempo, uma grande humildade. Não me julgava bem preparado. A Espanha era pobre em refúgios; eu temia, na ocasião de uma pane ameaçadora, não saber onde procurar o campo de emergência. (...) Com a alma cheia dessa mistura de timidez e orgulho fui passar aquela vigília de armas em casa de meu companheiro Guillaumet. Guillaumet precedera-me no serviço. Guillaumet conhecia os truques para desvendar os segredos de Espanha. Eu precisava ser iniciado por Guillaumet.
Quando entrei, ele sorriu:
- Sei da novidade. Está contente ?
Foi ao armário apanhar o vinho-do-porto e os copos. Voltou com seu sorriso:
- Vamos regar isso. Você vai ver, tudo irá bem.
Espalhava a confiança como quem espalha luz, aquele companheiro que mais tarde haveria de bater o recorde das travessias do correio aéreo da Cordilheira dos Andes e do Atlântico Sul. Naquela noite, em mangas de camisa, os braços cruzados sob a lâmpada, sorrindo o mais reconfortador dos sorrisos, ele me disse simplesmente: ‘as tempestades, a bruma, a neve, muitas vezes essas coisas o incomodarão. Pense então em todos os que conheceram isso antes de você e diga assim: o que eles fizeram eu também posso fazer.
No entanto desenrolei meus mapas e pedi-lhe para rever um pouco, ali comigo, a rota de viagem. E debruçado sob a lâmpada, apoiado no ombro do veterano, reencontrei a paz do colégio.
Mas que estranha lição de Geografia recebi ! Guillaumet não me ensinava a Espanha: ele fazia da Espanha uma amiga para mim. Não me falava nem de hidrografia, nem de populações, nem de pecuária. Não me falava de Guadix, mas de três laranjeiras que existem em um campo próximo a Guadix: ‘desconfie delas; é bom assinalá-las ai no mapa...’. E as três laranjeiras tomavam mais espaço na carta do que a Serra Nevada. Não me falava de Lorca, mas de uma simples fazenda perto de Lorca. Uma fazenda viva. E falava do fazendeiro. E da fazendeira. E aquele casal perdido no espaço, a quinhentos quilômetros de nós, assumia uma importância desmesurada. Bem instalados na vertente de uma montanha, como guardas de um farol sob as estrelas, aquele homem e aquela mulher estavam sempre prontos a socorrer homens. (...)
E aqueles trinta carneiros, dispostos para o combate no flanco de uma colina, prontos para avançar: ‘você pensa que este prado está desimpedido e de repente – zás – olhe trinta carneiros disparando sob as rodas. E eu respondia com um sorriso maravilhado tão pérfida ameaça.
Assim, pouco a pouco, a Espanha de minha carta se transformava sob a lâmpada, em um país de contos de fadas. Marquei com uma cruz os refúgios e as ciladas. Assinalei aquele fazendeiro, aqueles trinta carneiros, aquele córrego. No seu lugar exato assinalei aquela pastora desprezada pelos geógrafos”.